sábado, 28 de agosto de 2010

...e amanhã é domingo

Bom domingo para vocês.
Segunda-feira é um dia mais difícil porque é sempre a tentativa do começo de vida nova.
Façamos cada domingo de noite um réveillon modesto, pois se a meia-noite de domingo não é começo do Ano Novo, é começo de semana nova, o que significa fazer planos e fabricar sonhos.
Meus planos se resumem, para esta semana nova, em arrumar finalmente meus papéis, já que a governanta eu não vou ter mesmo.
Quanto aos sonhos desculpem, guardo-os para mim, como vocês guardam, com o olhar pensativo, de quem tem direito, os próprios.

Clarice Lispector (crônica).

A perfeição

O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível.
Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

Clarice Lispector - 'A descoberta do mundo' (livro de crônicas, pág. 155)

A partir de hoje...

...quero usar o meu blog para declarar o meu amor pela poesia, literatura, arte e psicanálise.
Quero dividir o meu prazer com as pessoas que, como eu, se deixaram capturar pelas descobertas inestimáveis de livros e autores que nos(e)levam às mais profundas reflexões; que nos acompanham nos momentos de falta e excesso.
Assim sendo, pretendo postar alguns dos textos de alguns escritores, não só os meus favoritos, mas os bons.
Assim começo por apresentar um pouco de Paul Celan e Lispector, a Grande Clarice...
Espero que gostem.

Silêncio!

Silêncio! Enterro o espinho no teu coração,
porque a rosa, a rosa
está com as sombras no espelho e sangra!
Já sangrava, quando nós misturámos o Sim e o Não,
quando o bebemos,
porque um copo, que caiu da mesa, tilintou:
repicou numa noite que escureceu durante mais tempo do que nós.

Bebemos com bocas ávidas:
sabia a fel,
no entanto espumava como vinho -
Eu segui o brilho dos teus olhos
a a língua balbuciou doçuras...
(E balbucia, balbucia ainda.)

Silêncio! O espinho penetra-te mais fundo no coração:
está unido com a rosa.

Paul Celan - 'Sete rosas mais tarde' (pág. 29)

Celan mais uma vez e sempre Celan

Durschs schüttelsieb schick idch den traum,
du fängst ihn auf, in Seelentellern
und setzt ihn der Speise zu,
die wir Ineinandergeknieten
verschmähen
müssen.

(27.12.1968)

Mando o sonho através do crivo vibrante,
tu apanhá-lo em pratos
da alma
e juntá-lo à refeição
que nós, os que ajoelham um dentro do outro,
temos de
desprezar.

'A morte é uma flor' Celan, pág.96/97.

(Tradução de João Barrento)