terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Reflexão

Saber ouvir é uma arte
E um exercício de generosidade

domingo, 6 de dezembro de 2009

Paul Celan

A morte é uma flor que só se abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora da estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

Artista plástico brasileiro, residente em Paris



Juarez Machado

O outro

Feridas mais fundas do que em mim
abriu em ti o silêncio,
estrelas maiores
enredam-te na rede dos seus olhares,
cinza mais branca
repousa sobre a palavra em que acreditaste.

Paul Celan

Elena...

Enquanto esperava pelo comboio para Montreux, Elena ia observando os passageiros que a rodeavam. Sempre que viajava, despertava nela aquela curiosidade, aquela esperança, aquela ansiedade que se costuma sentir no teatro ao subir do pano.
Descobriu um ou dois indivíduos com quem teria gostado de falar e perguntou a si própria se eles iriam apanhar o mesmo comboio que ela, ou se estariam ali só a acompanhar outros passageiros.
Os seus desejos eram vagos, impregnados de poesia. Se lhe perguntassem de chofre o que esperava, teria respondido: Le merveilleux.
Era um desejo que não se localizava em nenhuma parte do corpo. A reflexão que haviam feito acerca dela, num dia em que acabava de criticar um escritor que encontrara, era assaz verdadeira:
- "Você não é capaz de vê-lo como ele na realidade é, pois não é capaz de ver ninguém tal qual é. Ficará decepcionada, porque você está sempre a espera de alguém".
Sim, estava sempre à espera de alguém - todas as vezes que a porta se abria, todas as vezes que ia a uma soirée, a uma reunião, todas as vezes que entrava num café, num teatro...
Nenhum dos indivíduos que ela escolhera para companheiro ideal de viagem subiu para o comboio.

Anaïs Nin

A cobra e o pirilampo

Era uma vez uma cobra que começou a perseguir um pirilampo. Ele fugia com medo da feroz predadora, mas a cobra não desistia.
Um dia, já sem forças, o pirilampo parou e disse à cobra:
- Posso fazer três perguntas?
- Podes. Não costumo abrir esse precedente, mas já que te vou comer, podes perguntar.
- Pertenço à tua cadeia alimentar?
- Não.
- Fiz-te alguma coisa?
- Não.
- Então porquê é que me queres comer?
- Por que não suporto ver-te brilhar!!!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O MÁGICO E O CAMUNDONGO

Diz uma antiga fábula que um camundongo vivia angustiado com medo do gato.

Um mágico teve pena dele e o transformou em gato.
Mas aí ele ficou com medo de cão, por isso o mágico o transformou em pantera.

Então ele começou a temer os caçadores.

A essa altura o mágico desistiu. Transformou-o em camundongo novamente e disse:

-Nada que eu faça por você vai ajuda-lo, porque você tem apenas a coragem de um camundongo. É preciso coragem para romper com o projecto que nos é imposto. Mas saiba que coragem não é a ausência do medo, é sim a capacidade de avançar, apesar do medo, caminhar para frente, e enfrentar as adversidades, vencendo os medos...

Carlos Drumond de Andrade, poeta brasileiro -1902-1987

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Drumond

...a onça

Pense bem: não cutuque a onça com vara nenhuma.

A psicanálise morreu? Para quem?

Em relação às constantes declarações de que a 'psicanálise está morta', eu poderia seguir o exemplo de Mark Twain, que, tendo lido num jornal o anúncio da sua morte, dirigiu ao director do mesmo um telegrama comunicando-lhe: "a notícia de minha morte está muito exagerada".

Sigmund Freud in Alain de Mijolla.

E assim é.

Comunicação verbal e não-verbal

"Nenhum mortal pode guardar um segredo.
Sua boca permanece em silêncio, falarão as pontas de seus dedos..."

Freud (Caso Dora)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Hoje é assim 2...amanhã...pode não ser.

Estou um pouco distante do blog, acho que ainda não organizei os meus pensamentos depois dos últimos acontecimentos, e confesso que não sei o que falar do muito que tenho vivido. Mas vou retirar uma das pulgas atrás da orelha. E das coisas que tenho experienciado, o Doutoramento é a mais marcante, além da minha (des)arrumação interna rumo a ele. Ce n'est pas grave.
Pois é, afinal fui aceita no curso do ISPA - Instituto Superior de Psicologia, em Lisboa. Finalmente, um Doutoramento em Psicanálise, foi o que eu busquei.
A psicanálise foi sempre o espaço de articulação onde eu me frequentei, desde sempre.
Psicanálise e Arte, encontros e desencontros.
Psicanálise e Arte, campos de onde emerge o sujeito do inconsciente.
Psicanálise e Arte!!!
Bem, nada mais, por enquanto.

À un de ces jours et bon week-end!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Meus queridos

Rendo-me novamente ao talento e a arte de Lya Luft para descrever sentimentos, e faço delas minhas palavras para comunicar minha mudança de São Paulo.
Vou para Cunha, uma pequena cidade entre as serras da Mantiqueira, Mar e Caracangalha, refúgio de ceramistas e gente ocupada com o outro, consigo, com a natureza e com o espírito.
Levar uma vida simples, com tempo para meditar, rir, sentir, cuidar, conversar, conviver, apreciar, aprender e praticar!
Terei um atelier para brincar de fazer arte, muita arte! Lugar para plantar e colher.
Com vista para as montanhas, a casa azul tem janelas brancas, é pequena e modesta, mas com quarto de hóspedes para todos vocês! O email é o mesmo e aviso logo o número do novo telefone: VOU ADORAR RECEBÊ-LOS LÁ!
Engraçadinha, Cloé e Morgana vão comigo. Três gatas herdadas de minhas filhas que já me acompanham há alguns anos. Vão as orquídeas, as plantas da Carola e as minhas. Os livros também, mas serão oferecidos à comunidade. Talvez um Clube de Leitura, ideia de uma querida amiga Iara, que assim como outras, está me dando a maior força.
Sou especialmente grata às queridas Helô, Manuela , Iara L. , Pat, Nuncia, Tai, Lucia, Raquel, Regina, Ebe , Iara S., Carolina C., Ana , Lalada , Romilda, Cleide, Alzirinha, Vera M., Cyro, Carminha, Moacyr , Theda, Sr.Rocha, que vêm percorrendo comigo esse trecho do caminho...
Helô, arquiteta e artista, praticamente alugou a casa, propôs o projeto da reforma e continua alavancando a obra, física e emocionalmente!
Manuela caminha ao lado, disposta, incansável, encaixotou metade da casa e será minha sócia na "Casa das Arteiras".
Nuncia, heróica, enfrenta os sobe e desce da serra e da minha alma, às vezes à cem por hora.
Romi, ouvinte atenta, e sábia conselheira.
Priminha Lúcia com carinho e atenção constantes.
Coube ao Sr. Rocha as doses de bom senso, praticidade e coragem.
E de minha querida irmã carioca-lusitana, Iara, dispuz e disponho do seu colo, estímulo e ouvidos para todas as horas.
Mas de todos esses amigos queridos, e de outros que não citei, absolutamente de todos, recebo continuamente amor e apoio incondicional. É chavão, mas confesso: sem o quê, este passo não seria possível!
Com todo meu amor e gratidão, passo a palavra à Lya Luft:

“A idade e a mudança”

Mês passado participei de um evento sobre o Dia da Mulher. Era um bate-papo com uma platéia composta de umas 250 mulheres de todas as raças, credos e idades. E por falar em idade, lá pelas tantas, fui questionada sobre a minha e, como não me envergonho dela, respondi. Foi um momento inesquecível... A platéia inteira fez um 'oooohh' de descrédito. Aí fiquei pensando: 'pô, estou neste auditório há quase uma hora exibindo minha inteligência, e a única coisa que provocou uma reação calorosa da mulherada foi o fato de eu não aparentar a idade que tenho? Onde é que nós estamos?' Onde não sei, mas estamos correndo atrás de algo caquético chamado 'juventude eterna'. Estão todos em busca da reversão do tempo. Acho ótimo, porque decrepitude também não é meu sonho de consumo, mas cirurgias estéticas não dão conta desse assunto sózinhas. Há um outro truque que faz com que continuemos a ser chamadas de senhoritas mesmo em idade avançada. A fonte da juventude chama-se "mudança". De fato, quem é escravo da repetição está condenado a virar cadáver antes da hora. A única maneira de ser idoso sem envelhecer é não se opor a novos comportamentos, é ter disposição para guinadas. Eu pretendo morrer jovem aos 120 anos. Mudança, o que vem a ser tal coisa? Minha mãe recentemente mudou do apartamento enorme em que morou a vida toda para um bem menorzinho. Teve que vender e doar mais da metade dos móveis e tranqueiras, que havia guardado e, mesmo tendo feito isso com certa dor, ao conquistar uma vida mais compacta e simplificada, rejuvenesceu.
Uma amiga casada há 38 anos cansou das galinhagens do marido e o mandou passear, sem temer ficar sozinha aos 65 anos. Rejuvenesceu. Uma outra cansou da pauleira urbana e trocou um baita emprego por um não tão bom, só que em Florianópolis, onde ela vai à praia sempre que tem sol. Rejuvenesceu. Toda mudança cobra um alto preço emocional. Antes de se tomar uma decisão difícil, e durante a tomada, chora-se muito, os questionamentos são inúmeros, a vida se desestabiliza. Mas então chega o depois, a coisa feita, e aí a recompensa fica escancarada na face. Mudanças fazem milagres por nossos olhos, e é no olhar que se percebe a tal juventude eterna. Um olhar opaco pode ser puxado e repuxado por um cirurgião a ponto de as rugas sumirem, só que continuará opaco porque não existe plástica que resgate seu brilho. Quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar. Olhe-se no espelho...

Lya Luft, (escritora gaucha)

Recebi esta mensagem da minha amiga Gilda Telles, e lhe pedi autorização para publicá-la no meu blog. Fica aqui registrado o meu afecto.

Beijos saudosos,

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

(Des)arrumar a...

Meu último post foi no dia 4 de outubro, depois deste dia, recolhi-me.
Um tempo para (des)arrumar a vida como quem (des)arruma a casa.
Esta, aprecio-a com certa distância, só para observar o velho e pensar o novo.
Estantes brancas na parede amarela, quero mudar essas cores, trocar os móveis, as cortinas.
As cortinas! parecem pálpebras que se abrem e fecham para protegerem os olhos da luz intensa que entra pela janela e invade-me como uma lâmina quente e afiada.
Fecho a cortina...e escrevo.
Voltando ao quesito (des)arrumação, fico a pensar nas minhas desarrumações vida a fora, estas sim, foram fundamentalmente enriquecedoras para mim.
(Des)arrumar a vida...9000 km de distância com o Atlântico no meio, rumo à Portugal, trazendo na bagagem a certeza de todas as incertezas.
Para trás a minha história, os meus amigos, o Rio de Janeiro...
Quer queiram, quer não queiram, continua lindo! Excuse-moi.
Este foi o grande desafio.
Longe de todos os cheiros da minha terra...
do canto do sabiá...
das palmeiras imperiais do Jardim Botânico...
das areias quentes da praia do Leblon...
das minhas caminhadas matinais e diárias na orla marítima...o rosto ao sabor do vento e da maresia...
da Livraria Argumento, palco dos acontecimentos literários que tanto prezo.
Enfim...cá estou desde Setembro de 2000.
Choveu 2 meses seguidos quando aqui aportei.
Dizia para mim mesma que os deuses estavam a verter todas as suas lágrimas para lavar o caminho que eu deveria percorrer, mostrando-me que depois do dilúvio, arar a terra, semeá-la e fazer a colheita era responsabilidade única e exclusivamente minha.
Aceitei a empreitada.
Arregacei as mangas e pus as mãos na massa.
Mestrado, trabalho, leitura intensa, clínica...vida em movimento madrugada à dentro e mais tudo que o valha.
Hoje acordei cedo, muito cedo...
abri a cortina...
não havia sol...
não havia luz...
chovia e fazia frio.
Pensei: prenúncio de um novo tempo...será?
tempo de abrir as cortinas...
tempo de convidar o novo para entrar e trocar um dedo de prosa comigo
tempo de doctu
tempo de ser outro...
tempo de ser novo...
tempo de fechar...
tempo de abrir...
tempo de ser.

Quintana e eu, afinal, em que ponto nos encontramos?

Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com uma outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela.

Percebe também que aquele alguém que você ama (ou acha que ama) e que não quer nada com você, definitivamente não é o "alguém" da sua vida.

Você aprende a gostar de você, a cuidar de você e, principalmente, a gostar de quem também gosta de você.

O segredo é não correr atrás das borboletas...
é cuidar do jardim para que elas venham até você.

No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você!"


Grande Quintana!
Grande poeta!
És grande na sua sapiência!
És sábio na sua simplicidade para falar das coisas Grandes!

Mude - Clarice Lispector

Mude, mas comece devagar, porque a direcção é mais importante que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo por outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv, compre outros jornais...leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia.
O novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
A nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado...
outra marca de sabonete,
outro creme dental...
tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.
Jogue fora os velhos relógios,
quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros,visite novos museus.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível, sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente, outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda!
Repito, por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida nãovale a pena!!!

Nietzsche

“Minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas…
Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia.”

Friedrich Nietzsche

domingo, 4 de outubro de 2009

Reflexão...

As aulas... como eu gosto de dar aulas!
Penso sempre naquilo que Paulo Freire dizia “o educador que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca" - Freire, 1987.
Estranhamente, o aluno adulto, diante do mestre, sempre acha que não sabe, acanha-se, não confia no seu saber, adquirido com a experiência de vida, e acredita que este saber não sabe nada de nada.
Não é que Freire tinha razão. É bem verdade que alguns mestres até alimentam essa ideia usando a sua ‘sabedoria’ para manter a suposta ignorância do aluno adulto, e assim obter a garantia de não ver os seus ensinamentos postos em dúvida.
Pois prefiro o questionamento e a dúvida ao absolutismo estéril e limitante da vida.
Gosto de provocar a mudança, o pensar, a reflexão e a acção.
Portanto, caríssimos, convido-os a sair desse lugar de meros ouvintes passivos e partir em busca de outros saberes, alicerçados no questionamento e no saber vivencial.

Quero aprender...ensinar...aprender... ensinar...“Feliz daquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”- Cora Coralina.

CaRiana

Hoje é domingo dia de pensar a semana com tudo que pude experimentar, primeiro a emoção de (re)ler o blog http://118diasdepois.blogspot.com/ da Mariana em homenagem a sua irmã gêmea Carolina, falecida no dia 30 de Maio de 2009 aos 32 anos, e depois ler o site da Carola http://saudadedopunhal.blogspot.com/ foi outra emoção que afundou o meu coração.
Que pena...que pena! Para onde foi tanto talento, tanta beleza, tanta melancolia?
E de repente as lembranças...afectos antigos! Rio de Janeiro, Ipanema, Búzios ‘muito riso e pouco siso’ e Paul Celan. Poesia densa, profunda e cheia de dor.
Celan era um poeta judeu de língua alemã. Nasceu na Roménia, hoje Ucrânia, em 1920, e suicidou-se em 1970.
La mienne hommage.

CORONA
Da mão o outono me come sua folha: somos amigos.
Descascamos o tempo das nozes e o ensinamos a andar:
o tempo retorna à casca.

No espelho é domingo, no sonho se dorme, a boca não mente.
Meu olho desce ao sexo da amada: olhamo-nos, dizemo-nos o obscuro, amamo-nos como ópio e memória, dormimos como vinho nas conchas, como o mar no raio sangrento da lua.

Entrelaçados à janela, olham-nos da rua: já é tempo de saber! Tempo da pedra dispor-se a florescer, de um coração palpitar pelo inquieto,

É tempo do tempo ser.. É tempo.

domingo, 27 de setembro de 2009

Versos íntimos

Hoje acordei pensando na cáustica e melancólica poesia de Augusto dos Anjos, brasileiro, poeta e professor. E matutei comigo mesma 'parece que em algum lugar Anjos e Pessoa - O Fernando, se encontram, se conectam. Corrijam-me, por favor, os entendidos em anjos e pessoa, mas ambos apresentam uma linguagem orgânica que nos leva a perplexidade'.

Levantei-me, e fui até a estante buscar pela poesia que me faltava naquele instante, e lá estava ela, em forma de livro, capa preta, esperando para ser lida, e absorvida pelos meus sentidos: Eu, e outras poesias. Pronto aqui tens a intimidade desses versos, foi a minha escolha, e quero partilhá-la.


Versos íntimos


Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro da tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera -

Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável

Mora entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro

A mão que afaga é a mesma que apedreja.


Se a alguém causa inda pena a tua chaga

Apedreja essa mão vil que te afaga

Escarra nessa boca que te beija!


Augusto dos Anjos (20 de Abril de 1884 - 12 de Novembro de 1914)



domingo, 20 de setembro de 2009

Projecto "Psicologia para todos"

Escolhi como primeiro texto para apresentar no meu blog algo que fale mais de perto às pessoas que se interessam, sobremaneira, por temas sociais e comunitários.
Começarei por referir o Projecto Social-Comunitário «Psicologia para todos» do qual sou a idealizadora, citando Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, autor do livro « As veias abertas da América Latina », sua obra mais conhecida, nomeadamente pela esquerda latino-americana. Neste livro Galeano faz uma análise sobre a história da América Latina desde o colonialismo até a contemporaneidade, sem esquecer de tocar numa das várias feridas sociais que foi/é a exploração económica e política do povo latino-americano pela Europa e pelos Estados Unidos da América.
Mas como diz o nosso Eduardo Galeano “Somos o que fazemos, sobretudo o que fazemos para mudar o que somos” decidi fazer a minha parte na tentativa de mudar o rumo das coisas.
A idéia da implantação de um Serviço de Psicologia Clínica Comunitária, direccionado ao atendimento de pessoas economicamente desfavorecidas, surgiu do meu interesse profissional - e por acreditar neste projecto – despertado, inicialmente, pela grande procura de pessoas - no circuito fechado do meu consultório - por ajuda psicoterapêutica. Chamou-me a atenção o facto de todas as pessoas, sem excepção, nem ex-clusão, serem usuárias de antidepressivos e ansiolíticos – remédio para acordar e remédio para dormir – que, já dependentes destes medicamentos, não conseguiam as melhoras que buscavam. Mas também não sabiam nomear o que sentiam, nem tão pouco, tinham conhecimento do trabalho de um Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta, afinal, o que já tinham ouvido falar é que esses “doutores” eram “médicos de doidos”. Eles não queriam ser vistos como tal, entretanto, frequentavam os consultórios dos psiquiatras sem nenhum pudor/temor.
Em geral, essas pessoas apresentam experiências marcadas por grandes dificuldades na história de suas vidas, tais como: histórico de depressão, problemas conjugais, alcoolismo, agressividade, maus tratos domésticos, insatisfação sexual, falta de recursos financeiros, nível sócio cultural baixo, etc., resultando num descontentamento pessoal profundo, conflitos existenciais, desencontros amorosos, ausência de auto-estima, visão negativa da vida, desinteresse por elas mesmas, enfim, um total abandono afectivo.
Importante notar que o número de pessoas, fundamentalmente, mulheres e jovens, que mantém uma ‘depressão’ medicada, mas sem apoio psicológico, insiste em subir, como mostra a minha prática clínica.
Logo, esta proposta deve-se, primeiramente, às necessidades específicas de uma população carente de outras terapêuticas auxiliares para o alívio dos seus problemas, sem descartar a importância da terapêutica medicamentosa, claro se faz.
Portanto, percebendo a existência de crenças limitadoras da vida, e na própria programação mental dessas pessoas que não sabem como lidar com as suas emoções, ao ponto de revirarem-se, foquei este trabalho no sentido de criar recursos para que estas possam compreender e superar as suas dificuldades emocionais, bem como, oferecer a comunidade local um espaço adequado onde possam recorrer em busca de um entendimento melhor de si mesmas, ao apresentar-lhes a possibilidade de re-significação, reforçando a idéia de que elas as responsáveis pela própria mudança, e que o trabalho do profissional de psicologia é ajudá-las neste percurso.
Assim, criei um grupo de trabalho com outros colegas, e estagiários, para tornar possível ampliar um espaço que privilegia a fala e a escuta de si mesmo, objectivando a reprogramação da própria existência.
O trabalho é feito individualmente e em grupo. O atendimento em grupo visa, fundamentalmente, tornar possível o debate sobre questões importantes para cada um, estimulando a reflexão, a troca de experiência e o pensar sobre as possíveis causas presentes na génese dos seus problemas (depressão, angústia, ansiedade, conflitos internos, dificuldades emocionais, etc.), e que caminhos tomar, para além dos medicamentos.
Bem como, produzir material para trabalho de pesquisa nos diversos segmentos da Psicologia Clínica, ao facilitar a intervenção do estagiário como futuro profissional de Psicologia nas diversas áreas de inserção desta profissão.
O Projecto "Psicologia para todos" é desenvolvido na cidade de Viseu e será implantado na Figueira da Foz, futuramente.