domingo, 25 de julho de 2010

Diálogo indígena

Três índios bolivianos, à beira do lago Titicaca, lá junto do céu, ao pé do pico de Illampu, a 6.550 metros de altura, encostados nas pedras, olhavam o infinito, e fumavam seus longos cigarros de folhas de coca.
Depois de horas de total silêncio, um deles falou:

- Vou comprar a General Motors, a Volkswagem, a Ford, a Fiat, a Mercedes Benz, a Toyota, e ser o maior industrial do ramo de automóveis do mundo...

Silêncio quase total, só quebrado pelo barulho do vento nas folhas das árvores.

O segundo índio, depois de longo tempo falou:

- Pois eu vou comprar o Banco Central dos Estados Unidos, o Banco Central da Inglaterra, o Banco Central da Alemanha, o Banco Central do Brasil, o Banco Central da Bolívia, todos os grandes bancos, e vou ser o maior banqueiro do mundo.

Então, depois de algum tempo o terceiro, que nada tinha falado, falou:

- Não vendo!

E os três continuaram calados...

Sobre Lou Andreas-Salomé

Em seu livro 'Lou Andreas-Salomé', o autor Stéphane Michaud é convidado a fazer um 'passeio' pela história de vida de Lou Andreas-Salomé, bem como pelos lugares onde ela andou, desvendando pouco a pouco o rico universo em que ela viveu.
Lou Andreas-Salomé, nasceu em São Petersburgo, no dia 12 de Fevereiro de 1861. Um ser contagiante, uma intelectual sedutora, uma grande ensaísta, uma das mulheres mais inteligentes, expressivas e avançadas da sua época.
Exuberante, forte, vigorosa, uma mulher excepcional, que amava a vida, e a vivia com total liberdade. Aliás, 'viver' era a palavra de ordem que a norteava. Usufruía a vida com ardor, e grande intensidade.
Ela nos chega através da literatura, do cinema, e da história da psicanálise.
Autora de muitos livros, entre romances, poesia, peças de teatro e ensaios, artigos e resenhas em revistas de filosofia e psicanálise.
Foi amiga de Freud e uma de suas principais colaboradoras. Freud gostava tanto de Lou que chegou a confiar-lhe a análise de sua filha Anna. Imaginem...
Ela foi a primeira mulher a frequentar o grupo de Viena, abraçando a causa psicanalítica desde os primeiros tempos, tornando-se a primeira psicanalista mulher.
Uma vez Freud escreveu-lhe: “Você tem um olhar como se fosse Natal”, quando falava-lhe de coisas “terríveis” acerca do psiquismo, e Lou não se abalava.
Quanto ao amor para Lou, este era sinónimo de libertação, vivendo-o de forma incomum. Era um ser invulgar nessa arte, como demonstra nessa citação: “O amor dos homens, por mais ilimitado que seja, necessita do apoio de um robusto amor-próprio, para deste modo poder extrair do tesouro de riquezas individuais, que sem dúvida possui, aquilo que pode dar aos outros..."
Era através do amor, da amizade, da poesia, da psicanálise que Lou recriava-se, ressignificava a sua vida, imprimindo mais humanidade a sua existência. Descobria outras possibilidades, fazendo desabrochar potencialidades, num movimento constante pela eterna busca de novas experiências, levando-a a grandes produções intelectuais, e a conhecer-se e reconhecer-se como mulher em toda a sua capacidade amorosa. Ela nunca sentiu medo de se conhecer melhor.
Podemos, portanto, afirmar que o amor, a arte, a poesia e a psicanálise foram as ferramentas básicas para que Lou se (re)editasse como mulher em toda a sua plenitude e força.
Sua trajectória aponta para uma mulher que sempre viveu à frente do seu tempo, e os seus textos revelam uma época em que pouco era permitido às mulheres. O estreito vínculo entre o erotismo e a criação, por exemplo, presente em tudo que criava, demonstrava o seu espírito inquieto e provocador. Para Lou, o estado mais próximo do erotismo, não é outro, senão o estado criador. “O êxtase estético deslizando para o êxtase erótico”.
Lou conviveu rodeada por homens, e embora convivendo com tantos, não menos exuberantes que ela, e por eles ter-se deixado encantar, à poucos entregou o seu amor. Na verdade, a sua biografia mostra que a sua única paixão, foi pelo poeta Rainer Maria Rilke, um jovem de 22 anos, quando Lou tinha 36.
Em 14 de maio de 1904, Rilke escreve a seu amigo Kappus uma carta que fala sobre o amor e a mulher:
“O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios...A mulher, que uma vida espontânea, mais produtiva, mais confiante habita, está sem dúvida mais próxima do humano do que o homem...
E estas palavras 'moça','mulher', não significarão apenas o contrário de 'homem', mas qualquer coisa de individual, valendo por si mesmo; não apenas um complemento, mas um modo completo da vida: a mulher na sua autêntica humanidade". (Poemas e Cartas a um Jovem Poeta)
Era, definitivamente, a confirmação da análise feita por Lou sobre àquele que seria, até a morte, o grande e verdadeiro amor de sua vida. Um ser único, onde a sensibilidade e o intelecto interagiam de forma perfeita.
Sua relação com Rilke se revelaria fecunda para ambos. Quando Lou escreve 'A humanidade da mulher' e 'Reflexões sobre o problema do amor' (1899 e 1900), ela está sob o impacto da intensa experiência amorosa que vivia então, e Rilke também cresce como poeta mergulhado que estava neste amor.
Até o fim de sua vida, Lou faria do poeta a principal razão do seu afecto.
Em sua biografia, fica claro que o que a significou foi a sua natureza apaixonada, independente; foi a sua capacidade de dialogicidade em pé de igualdade com qualquer homem do seu tempo, por isso também foi respeitada.
Mas há muito o que se falar sobre Lou, isso não se esgota, pois à medida que me envolvo na magia das transformações da Obra (Lou), surpreendo-me cada vez mais com a riqueza deste percurso, pautado pela sua experiência interior; pela sua disponibilidade interna de viver o amor sem se perder de si mesma, pelo que há de “Humano, demasiadamente humano” (Nietzsche) em sua história.
Lou é a obra de arte, enquanto tal, transformando e recriando o seu 'criador', tomando de assalto o lugar possível do analista, transformando-se nesse olhar, para além de tudo que há.
A história de vida de Lou Andreas-Salomé, despertou em mim, há algum tempo, um grande fascínio por essa personalidade tão marcante, impulsionando-me a percorrer este caminho literário, bebendo dessa fonte cristalina de um saber que jorra da alma, sem a menor pretensão em analisar e/ou fundamentar teoricamente o seu viver.
E assim, apenas com os sentidos, vou seguindo a trajectória de vida desta grande mulher, através dos seus livros, e que se fez presente, respeitada e admirada num universo historicamente de machos, “uma das raras analistas que não é nem judia nem médica”.
Enfim, sempre que a retomo, dispo-me de outros saberes adquiridos, para não fragmentar e/ou comprometer a abrangência desse material ‘vivo’, e fazê-lo perder a sua unidade.



Iara Lugatte

Carta a Lou Andréas-Salomé

"Mais je ne suis pas - en dépit
de tout ce que vous pourrez
dire - un artiste, je n'aurais jamais
pu 'rendre' des effets de lumière
et de coloris, mais uniquement
dessiner de durs contours".

Sigmund Freud

Apesar do nosso Mestre ter-nos oferecido duros contornos da alma humana, ele também nos acenou com a luz em todo o conteúdo da sua obra.
O mundo, certamente, teria outros contornos sem a Psicanálise.
Freud foi um dos maiores pensadores do século XX, sem dúvida, e continua a provocar reflexões profundas neste nosso século.

VIII dos Sonetos Ingleses

"Quantas - quantas sobrepostas máscaras usamos
Sobre a face de nossa alma? - e mais, quando
Se para seu bel-prazer, se a desmascaramos,
Sabe ela, sem a derradeira, sua face estar fitando?
A verdadeira máscara seu reverso não conhece;
Para fora apenas olham seus olhos mascarados;
Qual for o sentir ou consciência que comece,
Aceitar é já tê-los adormentados.
Como criança assustada de um espelho pela imagem
Crianças, almas nossas, de pensar perdido,
Outrem fingem criando um mundo esquecido.
E quando a alma mascarada um pensamento fosse desvelar
Nem ele mesmo vai desmascarado p'ra a desmascarar".

Fernando Pessoa

The light is dark enough

Primeiro Acto

"...não pode um homem saber
Como conduzir-se ante outro homem
Sem primeiro responder a certas questões de base.
Em que coisas escolheu crer? Que bem e mal
Conseguiu ele inventar para seu próprio uso?
Em resumo, como e que fez de si para existir?
Posto isto, então, o nó do problema
É simplesmente responder a isto:
Será que o seu existir está ou não de acordo
Com o bem e o mal que eu inventei para mim?
Mas, se assim é..."

Christopher Fry

terça-feira, 20 de julho de 2010

Pois é...

...cá estou eu novamente depois de um longo tempo vivendo uma espécie de 'hibernação intelectual', além das mudanças que a vida nos propõe, ou impõe?
E nesse contexto 'hibernante' retomei a poesia de Paul Celan, e um artigo do Freud com os meus caros alunos no nosso grupo de estudos que acontece de 15 em 15 dias no meu consultório na Figueira da Foz.
Trata-se do 'Mal estar na civilização' editado entre 1929/1930. Todo o texto é significativamente importante, e traduz o sofrimento e o desamparo do Homem de todos os séculos e séculos, amém. Praticamente 80 anos depois de escrito ele continua actual. Mas gostaria de centrar a minha reflexão sobre o que o nosso Mestre nos oferece no III capítulo sobre sofrimento e felicidade, já mencionado anteriormente no mesmo artigo:
"Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo".
Freud já havia dado a resposta, mas indica-nos as 3 fontes de que provém o nosso sofrimento:
- o poder superior da natureza
- a fragilidade de nossos próprios corpos
- e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.
Quanto ao poder superior da natureza e a fragilidade de nossos próprios corpos, teremos que admitir que estes se constituem fontes indiscutíveis de sofrimento. A natureza é soberana, indomável, poderosa, e o nosso corpo faz parte dessa natureza, e nada nos resta senão adaptarmos-nos e submetermos-nos a ela. Sem que, portanto, nos rendamos a nenhuma força que nos conduza a paralização das nossas actividades. É a nossa luta constante pelo não-sofrimento, que ao meu ver também nos causa grande sofrimento, pois não o podemos eliminar definitivamente, somente atenuá-lo.
Segundo Freud, a terceira fonte é a social do sofrimento e a atitude do homem frente a ela é diferente pois este não a admite. E reforça:
"Não admitimos de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós. Contudo quando consideramos o quanto fomos mal sucedidos, exactamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse facto, uma parcela de natureza inconquistável - dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica"
Para Freud este argumento acaba por sustentar a ideia de que a civilização possui uma parte significativa de responsabilidade na desgraça humana e que esta seria mais feliz se abandonasse e retornasse 'às condições primitivas'. Freud refere-se a isso como "argumento espantoso" pois 'todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização'. E questiona: "Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a civilização?"
Afinal, continua Freud mais à frente: "Torna-se um louco alguém que, na maioria das vezes não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio".