domingo, 28 de fevereiro de 2010

Tomara

Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho

Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz

E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz
E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais.


Vinicius de Moraes

Cousas e coisas...

Gosto muito de poesia, e confesso que a poesia com as cores verde, amarelo, azul e branco causam-me um certo frisson, talvez pela distância das 'cousas' da minha terra sinto essas 'coisas' estranhas percorrendo o meu corpo, passando pelo meu coração em disparada, como num susto, e parando na garganta, como se um nó fosse. Alguém entende? Penso que sim.
Em 2007 fui presentada com um pequeno-grande livro com algumas poesias do nosso poetinha Vinícius de Moraes, editado em Portugal pela Arte Plural, intitulado 'O poeta não tem fim'. O livro é lindo, bem ilustrado, e todas as ilustrações fazem referência à minha terra.
Hoje, domingo chuvoso, sereno e preguiçoso (será que é o domingo ou sou eu?), ouvindo 'Chega de saudade' de/com Vinicius e Toquinho, fui até a estante em busca de Vinicius, ou seja, da sua poesia, e lá estava o seu 'auto-retrato' ao lado de uma foto das nossas jangadas. E assim Vinicius se define:

Auto-retrato

Nome: Vincius. Por quê? O Quo Vadis, saído em 13
Ano em que também nasci.
Sobrenome: de Moraes
De Pernambuco, Alagoas
E Baía (que guardo em mim).
Sou carioca da Gávea
Bairro amado, de onde nunca deveria ter saído.
Fui, sou e serei casado
E apesar do que se diz
Não me acho tão mau marido.
Filhos: três, e um a caminho
Altura: um metro e setenta
Meão, pois. O colarinho trinta e nove e o pé quarenta.
Peso: uns bons setenta e três (precisam ser reduzidos...)
Dizem-me poeta; diplomata
Eu o sou, e por concurso
Jornalista por prazer
Nisso tenho um grande orgulho
Breve serei cineasta (activo).
Sou materialista.
Deito mais tarde que devo, e acordo antes do que gosto.
Fui auxiliar de cartório, censor cinematográfico, funcionário (incompetente) do Instituto dos Bancários.
Actualmente sou segundo Secretário de Embaixada.
Formei-me em Direito, mas sem nunca ter feito prática.
Infância: pobre mas linda
Tão linda que mesmo longe continua em mim ainda.
Prefiro vitrola a rádio
Automóvel a trem, trem a navio, navio a avião (de que já tive um desastre).
Se voltasse a vida atrás gostaria de ser médico, pois sou um médico nato.
Minhas frutas predilectas, por ordem de preferência: caju, manga e abacaxi.
Foi com meu pai Clodoaldo de Moraes, poeta inédito, que aprendi a fazer versos (um dia furtei-lhe um para dar à namorada).
Tinha dezanove anos quando estreei com meu livro 'O caminho para a distância'. Meu preferido é o último: 'Poemas, sonetos e baladas'.
Toco violão, de ouvido, e faço sambas de bossa
Garoto, lutei jiu-jitsu razoavelmente. No tiro, sobretudo de carabina, sou quase perfeito.
As coisas que mais detesto: viagens, gente fiteira, fascistas, racistas, homem avarento ou grosseiro com mulher.
As coisas que mais gosto: mulher, mulher e mulher (com prioridade da minha), meus filhos e meus amigos.
Ajudo bastante em casa, pois sou um bom cozinheiro
Moro em Paris, mas não há nada como o Rio de Janeiro para me fazer feliz (e infeliz).
Desde os 7 anos venho fazendo versinhos
Gosto muito de beber, e bebo bem (hoje menos do que há dez anos atrás).
Minha bebida é o uísque com pouca água e muito gelo.
Gosto também de dançar, e creio ser essa coisa a que chamam de boémio.
Em Oxford, na Inglaterra, estudei Literatura Inglesa, que foi para mim fundamental.
Gostaria de morrer de repente, não mais que de repente, e se possível de morte bem natural.
E depois disso, ao amigo João Condé, nada mais digo.
(Poesia completa e prosa)


Bem, chega de saudade!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Corpo em relação

‘O corpo em relação’ e o conto de Franz Kafka ‘A Metamorfose’


O conto “A Metamorfose” de Franz Kafka, publicado em 1915, surge num momento histórico importante vivido na Europa na época, momento que antecede a Primeira Grande Guerra, período da Belle Époque que surge em França no final do século XIX (1871), e que se estendeu pelas duas primeiras décadas do século XX. A popularidade das grandes descobertas tecnológicas e a sua aplicação na vida prática provocaram nas grandes capitais do mundo ocidental uma verdadeira euforia e transformaram por completo a vida dos cidadãos.
Foi um movimento libertário efervescente, de características essencialmente urbanas, que provocou grandes transformações culturais, intelectuais e artísticas que mudaram radicalmente o modo de pensar europeu. A Primeira Guerra Mundial veio, porém, pôr um termo quase absurdo a tamanha euforia. Obras literárias como Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, A sinfonia, O Pássaro de Fogo de Stravinsky, o ensaio de Miguel de Unamuno O Sentimento Trágico da Vida e a Fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl marcaram a Belle Époque.
Kafka insere-se neste movimento de inquietação provocado por tanta novidade e consegue com este surpreendente conto capturar a estética da sua própria interioridade, transformando-a numa espécie de referência para o próprio corpo que se metamorfoseia em busca do equilíbrio, que - através do insecto - lhe ‘en-ceta’ a transformação do corpo e da alma, expondo o seu estado verdadeiro, existencial, mergulhado numa crise de toda a ordem, retratando a época, bem como a sua desesperança, o seu pessimismo, e as suas angústias geradas pelas respostas que não obtinha quando se questionava sobre valores, ética e futuro. Como muitos intelectuais do seu tempo, ele que se exprimia numa língua que nem sequer era a da maioria dos seus compatriotas, que não tinha a certeza da continuidade da sua pátria nem da sua cultura, desligado do passado e sem rumo certo, teria que se transformar para continuar a viver num espaço de ninguém. Aqui, parece que Kafka e Gregor Samsa se misturam, e se fundem num só corpo numa só relação de surpresa, prazer e dor.
A sua obra nos mostra a solidão e o abandono do Homem abrigado num corpo que se transforma, e se assume numa relação com outro corpo asqueroso, que habita o imaginário do Homem como algo repugnante que nos causa medo e nojo, mas que acontece com a legítima aquiescência do ‘olhar do pai’ como um ‘espelho’ que lhe garante a sua existência, mas que numa atitude desesperada, de grande teor psicológico, tenta matar o filho, atirando-lhe algumas maçãs nas suas costas, reforçando a sua condição rebaixada na escala animal: a condição de insecto que se pode matar com um pequeno objecto.

“A maçã que ninguém se atreveu a retirar das costas de Gregor, permaneceu mergulhada na sua carne como uma recordação palpável,
e o grave ferimento que ele, havia já um mês, apresentava, lembrava ao pai que, apesar da sua triste e terrível transformação, Gregor continuava a ser, não obstante, um membro da família, não devendo ser tratado como um inimigo, pelo contrário, o dever exigia que aquele desgosto fosse esquecido e que se prestasse a Gregor todo o auxílio possível”. (Kafka, pag.91)

Gregor Samsa, caixeiro-viajante por imposição familiar, no seu total e absoluto desconforto frente à sua condição de dominado e explorado, diante do seu conformismo, transforma-se num gigante insecto de grande representatividade, por possuir um forte poder de sobrevivência, vivendo para a reprodução, tão somente, além de ser um dos mais antigos seres a habitar o planeta, muito antes do Homem e que lhe sobreviverá por muito tempo mais no planeta.
Numa passagem do livro (Kafka, pág.51), Gregor, insecto, fechado no seu quarto, excluído, espreita a família pelas fendas da porta e percebe que estão todos em silêncio e pensa que aquela vida tranquila da sua família fora proporcionada por ele, e se sente orgulhoso por ser o responsável pela placidez existente naquela “simpática” casa.
Neste ponto, a relação firma-se como desumana, pois o personagem apresenta-se absolutamente destituído da sua humanidade, e como tal, não consegue exprimir dor, angústia e agonia. Gregor é a expressão mais profunda da ‘alienação’.

“Que aconteceria, agora, se aquela paz, aquela satisfação, aquele bem- estar, acabassem em terror e catástrofe? A fim de dissipar tão sombrios pensamentos, Gregor começou a fazer pequenos exercícios, a rastejar para diante e para trás sobre o soalho”. (Kafka, pág. 51).

O personagem denuncia a alienação do Homem e a sua relação com o absurdo de um mundo cuja história ele não consegue enxergar nem controlar. Entretanto, só a morte de Gregor pode resgatar a sua humanidade, e libertar a todos, inclusive o próprio Gregor.
“O corpo de Gregor, com efeito, estava inteiramente chato e seco. Isso podia ser notado mais facilmente agora que ele não se apoiava nas pernas – e que nada havia para enganar o olhar”. (Kafka, pág. 124)

E uma das maçãs permaneceu no quarto de Gregor, apodrecida, até a sua morte.

“Mesmo a maçã apodrecida, cravada nas suas costas, agora já quase lhe não causava dor, nem sequer a inflamação que se estendera às partes adjacentes, que se achavam cobertas por uma ténue camada de pó, lhe produzia, naquele momento, qualquer mal estar”. (Kafka, pág. 121).

Gregor Samsa se transform num insecto, e permanece na mesma posição de alienado, numa postura de espectador do seu próprio absurdo, do seu infortúnio e da sua incapacidade de mudar o mundo e a história. A filosofia social europeia do tempo da Belle Époque tinha descoberto as obras de juventude de Karl Marx, sobretudo os manuscritos de 1844 e os textos filosóficos onde o comunismo era apresentado como um humanismo, o processo para superar todas as alienações. Mas Kafka desconhecia essa solução que tanto empolgou os jovens pensadores do seu tempo, e influenciou muitas gerações.

Referências bibliográficas

ABREU FREIRE, António (1973) Idéologie et Revolution dans les oeuvres de jeunesse de Marx , Descleée de Brower, Paris/Montréal.

KAFKA, Franz (2002). A Metamorfose, Ed. Livros do Brasil, Lisboa.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Fernando, o Sujeito...

"O abismo é o muro que tenho
Ser eu não tem um tamanho"

...Pessoa

Voltando

Retomo hoje o meu blog, depois de quase 2 meses ausente deste espaço.
Neste tempo, e espaço, dediquei-me a (re)leitura de alguns textos, alguns poéticos, outros nem tanto, e a alguns escritos.
Pretendo estar por aqui semanalmente, não mais que isso. Hoje quero mostrar-vos a poesia da minha amiga Gilda Telles que anda "poesiando" lá por Cunha. Eu diria 'borboletrando'.

Montanhas de Cunha

Montanhas verdes, redondas, silenciosas...
Imperiosas, absolutamente desconhecidas
Alheias, além, elas jazem lá, não cá
Não há como falar com elas, compreender seu estar
Nem pensar! Não se permite, e poucos tentam e
Logo se conformam com seu segredo...

Sempre o mistério da partida prematura,
Do rosto que se vira, da mão que se esquiva,
De novo. Da palavra atravessando o momento
Mistério seu, meu, nosso, do universo...

Os versos enrodilham meu coração ferido
Mais ou menos protegido ele foge da verdade,
Do adeus, do enigma, da saudade...
Aonde andará Carolina, minha filha amada?

Em que ponto do oceano inconsciente
Sua gota de consciência se integrou?
Sinto-a longe, mas próxima, como sempre.
Numa longa viagem, desafiante para ela e
Assustadoramente incompreensível para nós

Mas é quase como se eu visse, sem poder,
Sua essência se abrindo lentamente
Como uma semente, em direção à Luz
Da clareza que não temos. Nem podemos
Confio nela, confio na minha percepção,
Carolina, sábia menina, está lá e cá,
Assim como as montanhas de Cunha.